quinta-feira, 2 de maio de 2013

Fui submetido à "Cura Gay"

Resolvi escrever este post pois já fazem quase dois meses que o pastor e deputado Marco Feliciano (PSC-SP) assumiu a presidência da CDHM e, embora sua presença na Comissão tenha causado um reboliço na sociedade colocando a discussão sobre a homofobia em diversas pautas (refleti um pouco sobre isso em outra postagem), tal figura continua sendo uma grande ameaça aos direitos já conquistados pelas minorias.

Digo isso pois na próxima reunião da Comissão será discutido um projeto de "cura gay" que pretende derrubar uma decisão do Conselho Federal de Psicologia (CFP) que há muito impede psicólogos de tentarem converter pacientes não-heterossexuais em pessoas heterossexuais.

Apesar de não acreditar que esse projeto consiga ser aprovado como lei, me incomoda muito saber que exista esse tipo de discussão em um espaço onde deveria se discutir a opressão contra as minorias ao invés de formas de oprimi-las ainda mais. Como uma pessoa que já foi submetida à "cura gay", acredito que minha voz seja legítima.

Como quase todos sabem, fui evangélico durante toda a minha adolescência. Frequentei a vertente Batista desde o final da infância até os meus 17 anos (idade com a qual entrei pra faculdade). Vivi durante esse período uma vida inteiramente norteada pelos dogmas da igreja -não necessariamente cristãos- e desta forma, o fato de ser homossexual sempre me atormentou por achar que seria condenado por Deus em virtude de meus desejos sexuais.

Eu percebo minha "identidade sexual" -não sei se essa expressão está sendo usada corretamente. Se não, alguém me corrija, por favor- em três grandes etapas: a primeira foi até a faixa dos 14 anos de idade, na qual sempre me senti atraído por meninos mas pensava que fosse algo que passaria quando chegasse à idade adulta. A segunda foi entre 14 e 17 anos, na qual minha fixa caiu e busquei intensamente uma "libertação" de minha homossexualidade. A terceira foi a partir dos 17 anos quando, já em contato com os estudos acadêmicos sobre sociedade, papel e status e instituições sociais, aceitei minha sexualidade como algo normal e inerente a mim e então saí do armário (sem retorno).

Foi nessa segunda etapa da minha vida que tive contato com a "cura gay". Queria muito ser heterossexual. Não que o fato de ser gay em si, como muitos evangélicos -é preciso que fique claro que não são todos desta mentalidade- dizem, cause transtorno e tristeza em homossexuais. É a cultura heteronormativa que nos oprime e nos faz pensar que somos inferiores por causa de nossos sentimentos. Quando o processo de aceitação acontece tudo muda, e nossa "identidade sexual" -não tô conseguindo encontrar uma expressão diferente dessa- passa a ser motivo de orgulho e não de vergonha.

Por causa dessa sensação de estar errado e precisar me "libertar" fui em busca de ajuda. Num primeiro momento, tentei por mim mesmo. Li vários relatos de ex-LGBT*s que haviam se convertido ao neopentecostalismo, orei, fiz jejuns, fiz votos de abstinência, subi ao monte (essa é uma prática comum entre evangélicos quando buscam uma causa mais "difícil". Não sei a origem desse hábito, talvez seja porque Jesus subia ao monte para orar), enfim... fiz tudo o que o protocolo manda para alcançar a "cura gay".

Segundo a crença evangélica, quando você entrega sua vida para Jesus, todos os seus vínculos com entidade demoníacas (a essas entidade acresce-se o que chamam de "espírito do homossexualismo") são desfeitos com base na passagem do livro de João, capítulo 8, versículo 32: "E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará". Só que uma dúvida sempre paira no ar: se no ato da conversão a pessoa crente é liberta, por que continua a homossexualidade? Para responder essa pergunta usam como base um versículo do livro de Mateus, capítulo 17, versículo 21: "Mas algumas castas só saem com jejum e oração". Pronto! Agora é fácil de resolver! "Se você possui o espírito do homossexualismo, depois de entregar sua vida a Jesus, deve fazer vigílias de oração e jejuar muito, além de ter muita fé. Se você não for liberto é porque você não está fazendo jejuns e orações ou não tem fé o suficiente." (!) Este foi o discurso que ouvi durante toda minha adolescência. A igreja evangélica é mestre em condenar os homossexuais e encontrar diversivos responsáveis pela homossexualidade. O discurso de "odiamos o pecado, amamos o pecador" é repetido constantemente e carrega pouquíssima sinceridade. O "gay shaming" -to pegando emprestado do termo "slut shaming"- nas igrejas é tão forte a ponto de um dia eu ter presenciado um pastor mandando um fiel "falar igual homem" na frente de várias pessoas.

Voltando ao meu caso, era de se esperar que eu internalizasse o discurso que me culpava por ainda ser gay. Orava a Deus pedindo fé para que me "curasse" constantemente. Para mim, a resposta para o meu problema estava em Mateus 17; 21. Se ainda continuo gay, aumento a dose de orações e jejuns. Era apenas um garoto de 15 anos, terminando meu Ensino Fundamental, quando fiz campanhas acordando de madrugada para orar e fazendo jejuns diários de dezessete horas. Sim! Estudava no turno da tarde e ficava sem comer de meia noite às 17h durante o período de alguns meses a ponto de emagrecer muito. Minha mãe e professores sequer sabiam disso (com certeza me impediriam e quereriam uma resposta que justificasse esses jejuns e eu não estava disposto a dar). Pode parecer completa loucura que um adolescente de 15 anos se submeta a isso, mas minha crença de que esse método me tornaria heterossexual me motivava a continuar.

Passou-se o tempo e, por volta dos 16 anos percebi que meus esforços não davam certo e a medida que ia envelhecendo meus desejos sexuais só aumentavam. Nesse momento senti a necessidade de procurar ajuda externa.  A resposta para minha angústia naquele estágio da vida estava em Tiago 5;16 que diz: "confessem os seus pecados uns aos outros para serem curados". Pensei minunciosamente a quem contaria pela primeira vez um segredo que sempre mantive comigo e duas pessoas influentes em minha igreja, que trabalham essencialmente com causas que eles chamam de "libertação interior" foram escolhidas. Um homem e uma mulher. Contei tudo a eles ao passo que ficavam impressionados com minhas declarações uma vez que eu também já era uma pessoa com cargos e conhecida dentro da congregação. Confesso que naquele momento senti um alívio enorme por não mais guardar sozinho esse segredo. Mais do que nunca pensei que a "cura gay" estava próxima. Fizemos orações, traçamos objetivos e pouco depois de completar 17 anos, comecei a namorar uma menina da escola. Meu relacionamento de três meses com ela me fez perceber que todo meu esforço, desde os 14 anos de idade, de nada valeram. Eu fiquei muito angustiado e desesperançoso, sem saber mais que armas usar para lutar. Terminei o namoro em Janeiro de 2010 e comecei a cursar Geografia na PUC Minas no mês seguinte. A universidade teve então um papel decisivo ao me mostrar uma outra possibilidade: a aceitação. Ainda no primeiro período saí do armário e desde então ser homossexual não é motivo de vergonha ou tristeza pra mim. Nunca me senti tão bem comigo mesmo em toda a minha vida.

A "cura gay" é um grande equívoco. Seja ela aplicada (mas nunca com eficácia, aceitem) por psicólogos, seja pela religião. Serei professor em breve e já tenho contato com vários adolescentes nas escolas onde faço estágio supervisionado. Não quero de forma alguma, que as crianças LGBT* com as quais trabalho sofram o que sofri por terem sua identidade sexual e/ou de gênero discriminada por aqueles que, como pessoas heterossexuais e cisgênero, pensam que sabem mais sobre nossas identidades do que nós mesmos.

2 comentários:

  1. Você foi incrível. Se expor dessa maneira não deve ser fácil. Graças a Deus existem pessoas como você para abrir os olhos dos iludidos e presos em dogmas doentios.
    Parabéns pelo seu espírito lutador. Parabéns por se libertar dessa prisão mental. PARABÉNS por aceitar quem VOCÊ É SEM MEDO.
    Se existe algum Deus nesse mundo, tenho certeza que ele não iria oprimir você. Pelo contrário, um pai e uma mãe de verdade consola e conforta.

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    1. Obrigado! Como uma pessoa que já participou da instituição religiosa evangélica, denunciar seus abusos é um compromisso social que tenho. E pra isso, obviamente, eu aponto os vícios da religião respeitando a religiosidade das pessoas que existe independente de uma instituição reguladora da fé (ou da não-fé).

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